A TV Globo exibida nesta quarta (20), após Mania de Você, especial Fala Negras, com concepção de Clayton Nascimento, ator e produtor cultural e um dos mais respeitados das artes cênicas da atualidade.
Se trata de um julgamento em que todos os personagens são fictícios, mas os jurados não. “A história do Wesley é uma criação artística completamente baseada em fatos da vida real e mostra para a nossa nação como pessoas jovens e trabalhadoras são levadas à prisão como criminosas, sem direito a uma defesa de qualidade. Também evidencia como as suas vidas são profundamente impactadas pelos reconhecimentos fotográficos realizados nas delegacias pela sociedade civil, ou seja, nós mesmos. Perceberemos como o ‘catálogo de suspeitos’ não é caso isolado, e para existir, movimenta uma grande parcela da sociedade”, adianta Clayton.
Nesta entrevista Nascimento fala sobre a concepção do projeto e de como onracismo impacta a sociedade e da importância de enaltecer e refletir sobre nossas atitudes: “O dia 20 de novembro é certamente uma data de celebração, mas nunca devemos esquecer sobre quais solos esta terra foi levantada, por isso também é um dia de reflexão e luta”, destaca o apresentador.
ENTREVISTA COM CLAYTON NASCIMENTO
Como se deu a escolha pelo tema “catálogo de suspeitos” para o ‘Falas Negras’ de 2024?
Sou um artista pesquisador. Tenho essa formação que instiga o criador a buscar temas, perguntas, curiosidades e incômodos sociais para gerar possibilidades criativas. Eis que lendo uma matéria do g1, encontro o triste fato de que 83% das pessoas presas injustamente por reconhecimento fotográfico, através do ‘catálogo de suspeitos’, são negras. Poderia ser eu mesmo, um primo, um vizinho. Achei a porcentagem tão alta! É a partir dessa informação que surge a necessidade de transformar o assunto em arte, criação. Nasceu assim o ‘Falas Negras’ 2024.
Como surgiu o convite para integrar a equipe do projeto?
Eu havia acabado de fazer a primeira temporada de MACACOS [espetáculo de teatro] no Rio de Janeiro, onde pude receber muitas pessoas na plateia. Uma delas foi a Antonia Prado, que também está na equipe de direção. Um dia ela me ligou e fez o convite.
Qual é a principal proposta deste episódio, na sua opinião?
A principal proposta deste episódio é mostrar para toda a nossa população brasileira como se dão esses casos. O que veremos é um estudo sobre o tema, então será compartilhado como acontecem, dentro das salas dos tribunais, os julgamentos que podem levar diariamente jovens negros para o sistema carcerário. Se pelos números – que já são chocantes por si só – a nossa sociedade não promove um movimento que exponha esse cenário, sinto que pela emoção que a narrativa promove conseguiremos enviar a mensagem de quão delicado, urgente e importante é falarmos das práticas, do modus operandi dos “catálogos de suspeitos”.
Como realidade e ficção se misturam nesse episódio?
O protagonista fictício Wesley Cosme da Silva representa milhares de outros jovens reais, negros e brasileiros, de 19 a 25 anos, e que foram presos. Além disso, quando eu estava em sala de roteiro com as competentes parceiras Mariana Jaspe, na escrita ao meu lado, e Jaqueline Neves, na pesquisa de todo o episódio, conseguimos ter acesso e conhecimento de múltiplos e distintos casos vindos do “catálogo de suspeitos”. E, como numa espécie de costura dessas narrativas, pudemos dar origem ao ‘Falas Negras’ 2024, e ao próprio “Caso Wesley”. Por isso, o nosso Wesley e sua mãe, Dona Rosa, certamente representam uma parcela de jovens negros brasileiros que estão clamando por ajuda, e que precisam fazer justiça.
Essa narrativa é inspirada em fatos reais? O que a história do Wesley demonstra para a sociedade?
A história do Wesley é uma criação artística completamente baseada em fatos da vida real e mostra para a nossa nação como pessoas jovens e trabalhadoras são levadas à prisão como criminosas, sem direito a uma defesa de qualidade. Também evidencia como as suas vidas são profundamente impactadas pelos reconhecimentos fotográficos realizados nas delegacias pela sociedade civil, ou seja, nós mesmos. Perceberemos como o “catálogo de suspeitos” não é caso isolado, e para existir movimenta uma grande parcela da sociedade.
Como foi participar desse projeto estando em várias funções, sendo criador, roteirista, diretor e apresentador?
Foi maravilhoso! Deliciosamente desafiador e muito formativo! Certamente, eu entro um profissional para criar, roteirizar, dirigir – sempre ao lado de uma grande equipe – e saio outro dessa vivência. Fiz uma reunião para mostrar o que eu estava criando e, advindo do teatro, como eu poderia tornar a experiência mais televisiva possível. Sorte a minha, pois pude beber direto da fonte de Rosane Svartman, que me deu dicas de ouro na carpintaria da escrita, assim como Manuela Dias, que sempre me apoia com seu conhecido rigor profissional, me falando sobre técnicas e possibilidades. Não posso nunca deixar de falar de Mariana Jaspe, que logo eu mesmo pediria para se tornar minha dupla na escrita, principalmente pelos olhares críticos, formativos e sobretudo construtivos dessas excelentes mulheres. Sem contar que, no meio do processo, recebi de Amauri Soares, em quem confio bastante, o convite para que eu apresentasse o programa. Fui com medo mesmo, e já logo corri atrás de profissionais para me ajudarem com seus conhecimentos. Maju Coutinho e Ana Paula Araújo foram as minhas mestras. Maju me contava bastante sobre a potência interna que um ator, dramaturgo e diretor, que eu havia mostrado ser em MACACOS, poderia levar para um apresentador do ‘Falas Negras’; assim como Ana Paula Araújo, que logo marcou um encontro comigo para falar das técnicas para apresentar um programa. Poucos dias depois, já começamos a gravar. Aprendi tanto em tão pouco tempo que essa foi daquelas experiências sobretudo formativas e de amadurecimento profissional e, certamente, para se guardar no coração.
Como você avalia a experiência que foi simulada no tribunal?
A experiência reflete o próprio povo brasileiro, assim como a nossa formação enquanto sociedade, que foi estruturada através de colonialismo, escravidão e punição. Ainda que sejamos uma sociedade que parece bastante solar, festiva, generosa e trabalhadora, fomos furtados de conhecimentos reais – e históricos – da nossa gente e, muitas vezes, acabamos por punir a nós mesmos. Tivemos 100% de aceitação dos participantes do nosso experimento social, e isso é um número muito bom, pois revela que eles perceberam a importância do que estamos falando. Crescemos todos enquanto sociedade.
O que o público pode esperar do especial deste ano, que marca o Dia da Consciência Negra?
O público pode esperar para este ano um programa sobretudo criativo, emocionante, responsável e comprometido. Esse é o primeiro ano em que 20 de novembro, o Dia da Consciência Negra em homenagem ao Zumbi dos Palmares, será feriado em todo o país, por isso, o ‘Falas Negras’ 2024 também é um especial para falar com toda a nossa nação. O dia 20 de novembro é certamente uma data de celebração, mas nunca devemos esquecer sobre quais solos esta terra foi levantada, por isso também é um dia de reflexão e luta. É como a equipe da Globo disse e eu adorei: “Não existe futuro sem justiça”. Portanto, aproveitemos o nosso episódio e reestruturemos alguns modos de olhar que temos para a nossa justiça.
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